quarta-feira, maio 04, 2011

ELE "MUCREVAVA" COM A GENTE!




-- Que nada, ele era do "mucrevo" e "mucrevava" com a gente -- respondeu do alto dos seus mais de cem anos de idade, meu tio-avô, sobre meu avô materno, acabando ali com uma teoria que eu estava alimentando havia anos.

Meu avô materno, "Zé Melo", foi uma das pessoas que mais me influenciaram na vida. O legado que ele deixou em mim é algo que até hoje, cinquenta anos depois, eu ainda não consigo mensurar. Ele é a influência mais perene em minha vida e a que sempre cresceu, conforme eu fui crescendo em consciência.

Eu ia completar onze anos de idade quando ele me presenteou com uma espingarda de caça, daquelas que se carrega pela "boca do cano". As palavras que ele pronunciou quando me deu aquela espingarda demonstram toda a sabedoria que ele era possuidor.

-- É sua. Mas só atire no que for comer -- me disse ele, numa lógica irretocável para qualquer ambientalista.

Claro, para uma geração que pensa que leite dá em geladeira e carne em prateleiras de supermercado, um garoto de dez anos jamais deveria possuir uma arma. No entanto, para o garoto que ajudou o avô a fazer uma nova casa de pau-a-pique, a espingarda representava apenas a evolução dos animais que eu já caçava para comer. Se eu antes eu caçava pássaros com um estilingue, com a espingarda eu poderia tentar matar um mocó, o que garantiria a carne de uma refeição.

No entanto, você deve estar morrendo de curiosidade sobre o significado das palavras de meu tio-avô que dá título a este texto: "ELE "MUCREVAVA" COM A GENTE!"


Pois bem, em 2001, eu fui até o interior do Rio Grande do Norte para conversar com algum dos parentes de meu avô que ainda estivesse vivo e que pudesse me dar detalhes sobre o meu avô materno. Afinal, minha mãe nunca conheceu nenhum parente sanguíneo do pai dela. Minhas tias tinham nomes estranhos que ele dera. Jaci, Juraci, Jurila, por exemplo, são nomes indígenas.

Meu avô também tinha uma sabedoria para lá de especial. Ele era capaz de levantar no meio da noite, olhar o céu e dizer que horas eram. Claro, morando no campo, numa casa sem energia elétrica, rádio de pilha ou relógio. Ele conhecia os astros, as constelações, e pelas posições deles no céu era capaz de saber a hora da noite.

Ele nunca foi a um médico e produzia os próprios remédios a partir de raízes, cascas e folhas de plantas. Eu adorava a companhia dele. Aos dois anos de idade eu já segurava a corda da ovelha ou do cabrito que ele matava, tirava o couro e cortava em pedaços, todos os sábados, para ser servido no almoço do pequeno restaurante que minha avó tinha na feira semanal do domingo, em Pedra Lavrada-PB.

Foi com ele que eu aprendi a reconhecer a Faúna e a Flora locais. Ele era o meu Google, o Youtube, o Natgeo e o Animal Planet da época -- só que ao vivo e em cores. Nunca vou esquecer do dia em que minha mãe e minha tia correram para chamá-lo para matar uma cobra que elas haviam encontrado perto de casa. Ele foi até lá, olhou para a cobra e disse:

-- Essa é do bem. Ela come outras cobras. Deixe ela por aí. Só tenham cuidado para ela não comer os pintos -- ensinando-nos que nem todas as cobras são venenosas e oferecem perigo aos humanos.

Por conta desse conhecimento, do cabelo e da fisionomia de minhas tias -- que parecem autênticas indígenas -- e da ausência de parentes dele, eu comecei a pensar que meu avô fosse um dos índigenas "convertidos" ao Cristianismo. Tudo parecia fazer sentido para mim. Daí, o motivo de eu ter viajado na busca de testemunhas vivas, pois meu avô nasceu em 1901 e morreu por volta de 1985, quando eu já não morava mais na Paraíba.

-- Que nada, ele era do "mucrevo" e "mucrevava" com a gente -- foi com essas palavras que meu tio-avô, irmão da minha avó, sepultou minha teoria sobre meu avô materno e cunhado dele. Claro, não fora a ajuda de meu pai em traduzir o que isso significava, eu não teria entendido nada.

"Mucrevo", segundo meu pai me disse, era o ofício de transportar os bens de consumo da época (açúcar, café, farinha, carne de charque, fumo, etc.), de uma cidade para outra, em lombos de jumentos. Sim, numa época em que automóveis e estradas asfaltadas eram uma raridade, as pessoas transportavam os bens em animais. Portanto, "mucrevo" foi a forma semi-analfabeta que meu tio-avô usou para dizer que meu avô materno era ALMOCREVE (do Árabe "mukãri"), significando que ele não era um indígena, como eu pensava até então, mas um transportador, ou, como se diz hoje, um homem de logística.

Ainda espero escrever mais sobre esse meu avô e os ensinos maravilhosos dele, além de outros homens que também me influenciaram. Mas por hoje é só.


Beijos

Bento Souto

P.S. A foto abaixo é da comemoração de 50 anos de casamento de meus avós e a única que eu tenho dele.

6 comentários:

Unknown disse...

Que "dilicia" de historia, Bento!

Ana Carolina disse...

adorei!

Rodrigo Augusto disse...

Bento, adorei a história do seu avô!!!
A forma com que você contou os detalhes, tornou o texto envolvente e atrativo... Vi a sinópse na comunidade "NAMMG", no Orkut...
Um forte abraço, fique na paz!

www.palcomp3.com/rodrigoaugusto

lipslikesugar disse...

Feliz quem tem histórias, e parentes pra contar, parabéns!

Leonardo Oliveira disse...

Muito interessante essas histórias, também aprecio ouvir das pessoas mais idosas. Inclusive, a palavra "mucrevava" me é familiar, ouvi muito do saudoso Sr. Pedro Alves, quando conversavámos. Muito bom o seu trabalho informativo !

Ronaldo Aquino disse...

Boa noite Bento !!!! Vim passar o final de semana na roça e ouvi a tia de minha esposa falando para o marido q ele não queria sair e ficava mucrevando dentro de casa, fui para o Dr Google e encontrei sua história, muito interessante gosteime faz lembrar da infância na roça.