quinta-feira, novembro 05, 2009

"ALFREDINHO" - MAIS UM DOS ANÔNIMOS DE JESUS

Ele viveu entre nós

Frei Betto


Salão do Sindicato dos Cozinheiros de Paris, início da década de 40. 0 presidente indaga quantos trabalhadores tem um mes de férias por ano. Uns tantos se levantam. Quem tem apenas uma semana de descanso. Uns poucos ficam de pé. Quem só obtém licença do patrão para descansar apenas no fim de semana. Outro punhado de pé. Quem nunca descansa? Um rapaz suíço, com pouco mais de um metro e meio de altura, levanta-se ao fundo. Era Alfredo Kunz, um militante cristão.

Meses depois, Alfredinho, como era conhecido, foi mobilizado pelo Exército francês para lutar contra o avanço das tropas de Hitler. Aprisionado, passou a guerra num campo de concentração na Áustria, ao lado de prisioneiros soviéticos. Aprendeu russo para pregar o Evangelho a seus companheiros de infortúnio. Em 1945, logrou fugir do campo, onde morreram cerca de 40 mil pessoas. Estranhou a indiferença dos soldados nazistas que cruzavam com ele, um notório evadido, com uniforme azul e cabeça raspada. Naquele dia, a guerra terminara.

Alfredinho tomou três decisões: tornar-se padre, trabalhar com os mais pobres entre os pobres e jamais vestir outra roupa que não reproduzisse o modelo do uniforme do campo, em memória de seus companheiros mortos.

Ingressou na congregação dos Filhos da Caridade e, a convite de dom Antônio Fragoso, em 1968 veio para a Diocese de Crateús (CE). Perguntou ao bispo qual era a paróquia mais miserável da diocese. Dom Fragoso apontou Tauá, região de seca e flagelo. Alfredinho instalou-se na capela local. Desprovida de casa paroquial, ele dormia no colchão estendido junto ao altar e cozinhava num fogareiro.

Certa noite, foi chamado para atender uma prostituta que, cancerosa, agonizava em seu barraco de taipa, na zona boêmia. Antonieta queria confessar-se. Padre Alfredinho disse a ela: "Somos nós que devemos pedir perdão a você. Perdão pelos pecados de uma sociedade que não Ihe ofereceu outra alternativa de vida. Como Jesus prometeu, Antonieta, você nos precederá no Reino de Deus. Interceda por nós."

Após receber a absolvição e a unção dos enfermos, a mulher faleceu. Não havia dinheiro para o caixão. As prostitutas enrolaram a companheira num lençol e arrancaram a porta de madeira do barraco para levar o corpo a vala comum do cemitério. Ao retornar para colocar a porta no lugar, Alfredinho teve uma inspiração. Durante anos, o vigário de Tauá habitou aquele casebre em plena zona boêmia da cidade.

Num tempo de seca, os flagelados invadiam as cidades do Ceará. Temerosos, muitos fechavam as portas. Alfredinho criou a campanha da Porta Aberta ao Faminto (PAF), cartaz que cerca de 2 mil fami1ias ostentaram em suas casas, acolhendo as vítimas do descaso do poder público.

Fomos amigos e bebi de sua espiritualidade. Barbado, vestido com a roupa azul que lembrava um macacão, sandálias nos pés e mochila nas costas, o aspecto de Alfredinho não diferia do de um mendigo. Convidado a pregar o retiro dos franciscanos, em Campina Grande, chegou de madrugada e dormiu na escada da igreja do convento. Ao acordar, catou as moedas que encontrou em volta e bateu a porta. "Quero falar com o superior", disse ao porteiro. "O superior não pode atender. Está em retiro." Alfredinho tentou esclarecer: "Sim, eu sei, pois vim pregar o retiro." O porteiro já ia expulsá-lo quando Alfredinho foi reconhecido por um frade que passava.

Testemunhei fato idêntico em Vitória, nos anos 70. A cozinheira interrompeu meu jantar com dom João Batista da Motta Albuquerque para comunicar: "Um mendigo insiste em falar com o senhor." O arcebispo reagiu: "Diga a ele que espere, minha filha. Vou atende-lo após o jantar." Era o padre Alfredinho, que viera pregar o retiro do clero local.

Em 1988, Alfredinho mudou-se para a Favela Lamartine, em Santo André (SP). Passou a viver entre o povo da rua e a dedicar-se a confraria que fundou, a Irmandade do Servo Sofredor (Isso), hoje congregando pessoas consagradas aos mais pobres em dez Estados do Brasil e vários países. Sua trajetória espiritual entre os excluídos está narrada em seus livros, muitos traduzidos no exterior: A sombra do Nabucodonosor, A Ovelha de Urias, A Burrinha de Balaão, A Espada de Gedeão e O Cobrador.

No domingo, 13 de agosto, Alfredinho transvivenciou, acolhido por Aquele que era o seu caso de Amor. Deixou como herança o testemunho de que uma Igreja afastada do pobre é uma Igreja de costas para Jesus..

Frei Betto, escritor, é autor do romance sobre exclusão social Hotel Brasil (Ática), entre outros livros

sábado, setembro 19, 2009

O DEUS QUE É DISCRETO, SIMPLES, GENTIL E HUMILDE

O negócio da religião é simples de discernir e difícil dele sair de dentro da gente.

Na religião há uma bandeira, um time e uma torcida para cada uma delas.

Um ser religioso é um ser de rituais e costumes, aliados a um "respeito" a letra morta da escritura --- seja ela qual for: Cristã, Muçulmana, Budista, etc. --, a quem ele proclama defender.

O Deus da religião tem nome e é carente de adoração via "sacerdotes" em reuniões coletivas.

Já o Deus em quem eu creio é aquele que é O NOME, o Deus que é!

O Deus que é discreto, simples, gentil e humilde -- para a surpresa de muitos.

Sim, o Deus que não aceita adoração senão a da vida em misericórdia para com o próximo.

Sim, o Deus humilde, pois Ele só se dá a conhecer aos que falam a língua universal do AMOR -- que é a essência dEle mesmo -- e só busca adoradores que o adorem, não em um "lugar", mas, no íntimo do ser, em espírito e em verdade; que o adorem na vida -- mesmo quando escrevem, falam, comem, bebem, e, principalmente, quando se relacionam com outros seres humanos e com o Planeta.

Sim, o Deus humilde que quando vestiu cara de gente, só se fez discernir por quem creu nEle, pois não havia aparência nenhuma exterior de poder ou pompa real.

Quem é da religião (do time, da bandeira e da torcida), de qualquer uma delas, quando vê um hindu amar como Gandhi ou um muçulmano como Yunus, se não for do mesmo time, tende a sentir pena que alguém tão bom possa estar tão enganado.

Quando eu vejo alguém que ama o próximo, independente da etiqueta religiosa ou cultural, eu ligo na hora com os personagens dos evangelhos a quem Jesus elogiou a fé -- a mulher sírio fenícia, o samaritano, o centurião romano, etc. --, e que não eram da "religião" de Jesus... rsrsrs Como se Jesus tivesse "outra religião" que não a do AMOR.

Assim, querido(a), "escritura", para mim, é a história do relacionamento de um povo com Deus. Palavra, é aquela que é impressa na nossa alma, e não em páginas de um livro.

É isso que eu discerni.


Abcs Bento

quinta-feira, julho 02, 2009

O BANQUEIRO DOS POBRES – SUBORNO E DESVIO DE DINHEIRO!

Em 1984, quando ficou claro para o Banco Mundial que não permitiríamos que se metessem na direção do Grameen, eles desistiram de nós e resolveram formar a sua própria organização de microcrédito em Bangladesh, onde mesclavam nosso modelo de empréstimo a atividades não ligadas a crédito de outras organizações sem fins lucrativos bem-sucedidas no país. Achei a idéia não realista e lhes disse isso.


 

O governo de Bangladesh aceitou nossa avaliação e resistiu à iniciativa do Banco Mundial, o qual parece não ter aprendido nada com nossa argumentação da inviabilidade da sua proposta. Pelo contrário, retirou do documento do projeto recusado o nome "Bangladesh" e o ofereceu ao governo de Sri Lanka.


 

As instituições de ajuda multilateral têm muito dinheiro para distribuir com quantias estabelecidas para cada país. Quanto mais dinheiro concederem, melhor seu conceito como doadores de empréstimo.


 

Em meu trabalho em Bangladesh vi o desespero dos funcionários dos organismos doadores para conceder maiores quantidades de dinheiro. Eles fazem o que for preciso para conseguir isso: subornam direta ou indiretamente funcionários do governo ou políticos; alugam casas para instalar o escritório do projeto; providenciam viagens ao exterior para o funcionário do governo, organizando seminários e congressos em cidades que ele quer visitar.


 

Um funcionário de uma instituição financeira doadora me confidenciou que não conseguia fazer seu projeto avançar, atravancado pela burocracia de Bangladesh. Ele teria então aceitado uma proposta de financiar um outro projeto, de 5 milhões de dólares, na área residencial do funcionário do governo responsável pela aprovação do projeto inicial, este de 100 milhões. (Considerei inútil até mesmo esse projeto maior, para o qual ele estava tão ansioso em obter aprovação do governo de Bangladesh.)


 

Fiquei chocado quando ouvi essa história e os detalhes do projeto de 5 milhões de dólares que ele concordara em financiar.

- Você sabe muito bem que esse dinheiro simplesmente irá para o bolso dos amigos dos funcionários do governo.

O funcionário do organismo doador disse:

- Claro que sei. Mas esse é o preço que estou disposto a pagar pela aprovação do meu projeto.

- Você quer dizer que está havendo suborno! - disse, indignado.

- Bom, eu não penso assim. Esse é um projeto legítimo, que vai ser submetido ao processo de avaliação.


 

O dinheiro do suborno seria fornecido por uma instituição internacional. E o pior disso tudo: o povo de Bangladesh é que iria pagá-lo, com juros.


 

Em outros casos os consultores, fornecedores e empreiteiros facilitam o mecanismo do suborno. Afinal de contas eles são os maiores beneficiários dos projetos financiados. Os cálculos de uma instituição de pesquisa nos mostram que, dos mais de 30 bilhões de dólares em ajuda externa recebidos nos últimos 26 anos, 75% nunca chegaram realmente a Bangladesh na forma de dinheiro. Em vez disso eles vieram como equipamento, commodities, suprimentos e o custo de consultorias, contratantes, conselheiros e especialistas.


 

Alguns países ricos usam o orçamento de ajuda externa para empregar suas próprias pessoas e vender seus próprios bens. Os 25% restantes que efetivamente chegaram a Bangladesh na forma de dinheiro foram para as mãos de uma pequena elite local de fornecedores, empreiteiros, consultores e especialistas. A maior parte desse dinheiro é usada na compra de bens de consumo importados que de nada valem para a nossa economia ou para a força de trabalho do nosso país. E há uma crença generalizada de que grande parte do dinheiro dos doadores acaba sendo dada a funcionários e políticos como suborno para definir decisões de compras e assinaturas de contratos.


 

O problema é o mesmo em todo o mundo. A base da ajuda internacional é de 50 a 55 bilhões de dólares anuais. E muitos dos projetos financiados com esse dinheiro criam burocracias governamentais imensas, que se tornam corruptas e ineficientes e logo se desviam dos objetivos originais. A ajuda é dada com a suposição de que o dinheiro deve ir para os governos. Num sistema que alardeia a superioridade da economia de mercado e da livre empresa, o dinheiro da ajuda internacional acaba sendo destinado à expansão dos gastos governamentais, atuando freqüentemente contra o interesse da economia de mercado.


 

Já afirmei muitas vezes que o dinheiro gasto em infindáveis burocracias seria muito mais bem aproveitado se fosse dado como crédito às pessoas mais necessitadas do nosso país. Por exemplo, pôr nas mãos dos 10 milhões de famílias mais pobres de Bangladesh, como crédito, a soma de 100 dólares exigiria 1 bilhão de dólares à vista. As famílias beneficiárias poderiam investir esse dinheiro em empreendimentos que aumentariam a sua renda. Se 90% do dinheiro fosse recuperado, teríamos criado um fundo rotatório de 900 milhões de dólares, a ser reciclado como empréstimos sucessivas vezes.


 

A ajuda externa normalmente vai para a construção de estradas, pontes, etc. que supostamente ajudam "a longo prazo" os pobres. Mas a longo prazo o pobre e faminto vai morrer. E do mundo real nada vai para ele.


 

Não me oponho à construção de estradas e pontes. Mas elas fazem sentido apenas quando os pobres podem se beneficiar da sua existência. E isso normalmente não acontece.


 

Os principais beneficiados, direta e indiretamente, por essa ajuda são os ricos, embora tudo seja feito em nome dos pobres. A ajuda externa se torna caridade para os poderosos. Se se pretende que ela tenha algum impacto na vida dos pobres, é preciso redirecioná-la de modo que atinja os domicílios diretamente, sobretudo as mulheres dos lares mais pobres. Acho que uma nova metodologia de ajuda precisa ser pensada com novos objetivos.


 

Atacar diretamente a pobreza deve ser o objetivo de toda ajuda para o desenvolvimento, que deve ser considerado uma questão de direitos humanos, e não uma questão de crescimento do PNB, que considera que, se uma economia nacional melhora, os pobres se beneficiarão disso.


 

A concepção de desenvolvimento precisa ser redefinida: desenvolvimento deve significar uma mudança positiva no status econômico dos 50% da população que vivem em condições de vida inferior. Se não ajudar a melhorar a condição econômica dessa faixa da população, então não se trata de ajuda para o desenvolvimento. Em outras palavras, é preciso julgar e medir o desenvolvimento econômico pela renda real per capita dessa população.


 

terça-feira, junho 30, 2009

O BANQUEIRO DOS POBRES – “OS CONSULTORES”

A consultoria é uma atividade respeitável. Mas em países dependentes da ajuda de doadores ela perdeu o seu significado original e se tornou algo muito preocupante. Todos sabem o quanto os países do Terceiro Mundo se tornaram dependentes dos doadores. Mas não se avalia o quanto a burocracia os tornam dependentes dos consultores.


 

Uma categoria específica de consultores é exímia em produzir pilhas de documentos, bem-encadernados e bem-impressos. A qualidade desses documentos não interessa a ninguém. Um número cada vez maior de consultores internacionais está se notabilizando em vender seus serviços no ramo de ajuda externa. Atualmente é considerado o melhor consultor aquele que pode justificar, convincentemente, decisões que já foram tomadas pelos funcionários dos doadores.


 

Quando visitam um candidato a doação, os consultores fingem que estão interessados em seus apelos. Mas suas conclusões, em quase todos os casos, já estão preestabelecidas pelos organismos doadores que representam. Eles trabalham dentro daquela orientação, porque assim vão poder ser novamente contratados. Muitas vezes, os consultores são como técnicos de futebol que nunca jogaram ou viram um jogo de futebol em sua vida. Técnicos de futebol cujo único jogo que já jogaram foi o vôlei.


 

Considero que o crescimento da atividade de consultoria desencaminhou gravemente os organismos doadores internacionais. A existência do consultor pressupõe que o país beneficiário precisa ser guiado passo a passo na identificação, preparação e implementação do projeto. Os doadores, e os consultores por eles empregados, tendem a assumir uma atitude arrogante em relação aos países beneficiários.


 

Os consultores têm um efeito paralisante sobre os países beneficiários. Atualmente os funcionários e os acadêmicos dos países beneficiários aceitam os números mencionados nos documentos dos doadores preparados pelos consultores. Não apresentam seus próprios fatos e números.


 

Sei que os organismos doadores são bastante pressionados para usar a verba destinada para fins de doação dentro de cada ano fiscal; e os caros consultores têm a excepcional qualidade de dar ao trabalho um aspecto de profissionalismo. Os países beneficiários acham ótimo poder deixar os detalhes para os consultores, pois quase sempre só estão interessados na quantia que irão receber. Quando o acordo é assinado e os projetos são lançados, começam a surgir os problemas reais. Mas ninguém pensa em culpar os consultores; estes, por sua vez, lançam toda a culpa nos ombros dos países beneficiários. Brincando com os projetos que tratam do destino das pessoas, acabam por ficar com uma parte considerável do dinheiro.

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Esse negócio de doações acabarem enchendo os bolsos de quem diz que quer resolver um problema social se torna explícita nas palavras de José Padilha, diretor dos filmes "Tropa de Elite" e "Ônibus 174"


 

"Tem ONGs seriíssimas, mas há também as que não são. Quando fiz 'Ônibus 174', olhei a estatística de meninos de rua e ONGs no Rio [Rio de Janeiro]. Eram 3.400 meninos de rua e 1.615 ONGs. Se cada uma pegasse dois, acabava o problema. As ONGs são importantes, mas desconfio da proliferação."

segunda-feira, junho 29, 2009

O BANQUEIRO DOS POBRES – O BANCO MUNDIAL


 

Banco Mundial Washington D.C., 1993


 

Foi um longo caminho percorrido, dos 27 dólares emprestados a 42 pessoas em 1976 até os 2,3 bilhões de dólares emprestados a 2,3 milhões de famílias em 1998. Em 1997 realizou-se a Conferência do Microcrédito, que lançou uma campanha de âmbito mundial para atingir 100 milhões de famílias no ano 2005. Os programas do Grameen se estendem por todo o mundo, do Equador à Eritréia, de ilhas no círculo polar ártico até Papua-Nova Guiné, no sul, dos guetos do centro de Chicago até as comunidades remotas das montanhas do Nepal.


 

Mas estamos em novembro de 1993, uma ocasião extremamente importante para o Grameen, porque finalmente as nossas idéias chegaram ao local sagrado dos países doadores. Fui convidado pelo presidente do Banco Mundial para falar à Conferência Mundial da Fome, na sede do Banco Mundial, em Washington D.C. Ao me levantar para falar, imagens daquelas mulheres batalhadoras passam por minha mente.


 

Detenho-me e olho pensativamente para a audiência. Quem teria imaginado que, vindo de meu escritório em Mirpur, um bairro de Daca, localizado defronte a uma favela, eu estaria aqui, no centro internacional do mundo financeiro, desafiando o Banco Mundial com um discurso que relataria nossas experiências e nossos métodos?


 

Como o Banco Mundial e o Grameen tiveram, ao longo dos anos, tantas contendas e discordâncias, às vezes se comenta que ambos prezam essa briga. Alguns funcionários do Banco Mundial até entenderam a razão do microcrédito, mas nossos estilos são tão radicalmente diferentes que eles não poderiam nos dar a assistência ou a ajuda de que precisávamos. Durante muitos anos o Grameen gastou muito tempo e energia nessa contenda com o Banco Mundial.


 

Diante daquela audiência me lembrei da teleconferência ocorrida no Dia Mundial da Alimentação, em 1986. Patricia Young, coordenadora nacional da Comissão Americana do Dia Mundial da Alimentação, havia me convidado para participar de uma mesa-redonda, junto com o então presidente do Banco Mundial, Barber Conable, numa teleconferência que seria televisionada para trinta países. Apesar de não ter idéia do que fosse uma teleconferência, aceitei o convite. Era uma oportunidade para explicar por que eu achava que o crédito devia ser considerado um direito do homem e como ele podia exercer papel estratégico na eliminação da fome da face da Terra.


 

Essa teleconferência deu início à rixa. Não tinha intenção de chamar para briga o presidente do Banco Mundial, mas fui forçado. Ele comentara que o Banco Mundial fornecia ajuda econômica ao banco Grameen em Bangladesh. Achando que devia corrigir a informação errada, educadamente disse que o Banco Mundial não fizera isso. Duas vezes mais, ignorando meus protestos, Conable repetiu que o Banco Mundial dava ajuda financeira ao banco Grameen. Não queria passar por mentiroso, então insisti: "Nós, do banco Grameen, nunca quisemos ou aceitamos dinheiro do Banco Mundial, porque não gostamos do modo como ele realiza seus negócios. Qualquer projeto que financiam acaba sendo assumido por seus especialistas e consultores. Eles não descansam enquanto não moldam o projeto do seu modo. Não queremos intromissão no sistema que nós construímos e não aceitamos ordens que modifiquem nossa maneira de conduzir o negócio".


 

Foi nesse ano que rejeitamos a oferta de um empréstimo a juros reduzidos de 200 milhões de dólares feita pelo Banco Mundial.


 

Já que o sr. Conable havia me levado para o ringue, eu o enfrentaria. Segundo ele, o Banco Mundial empregava os melhores cérebros do mundo, portanto as suas soluções eram sempre as melhores. Contestei: "A contratação de grandes cérebros não se traduz necessariamente em políticas e programas que ajudam as pessoas, particularmente os pobres. De que adianta serem eles os melhores do mundo, se pairam acima das nuvens e não conhecem a vida terrena? O Banco Mundial devia contratar pessoas que entendessem o pobre e a sua vida. Esse conhecimento tornaria esta instituição mais útil do que é atualmente".


 

Acho muito constrangedor o estilo dos doadores multilaterais de fazer negócios com os pobres. Posso citar minha experiência com o Projeto Dunganon na ilha de Negros, nas Filipinas. A ilha era muito pobre e mais da metade de suas crianças eram subnutridas. Em 1988, foi iniciado o Projeto Dunganon, que era baseado no nosso. Em 1993, a dra. Cecile del Castillo, ainda inocente com relação à natureza e aos hábitos de trabalho dos consultores internacionais, pediu dinheiro ao IFAD (Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola) para ajudar a expandir o seu programa. O IFAD, organismo das Nações Unidas, com sede em Roma, criado para dar ajuda à população rural carente, concordou prontamente com o pedido de ajuda feito por Cecile del Castillo, mandando quatro missões para investigar a sua proposta. Gastou milhares de dólares em passagens aéreas, diárias e honorários, mas o projeto nunca recebeu um único centavo.


 

Entretanto isso resultou num acordo assinado, em 1996, entre o governo das Filipinas, o Banco do Desenvolvimento da Ásia e o IFAD. O acordo determinava que o Banco do Desenvolvimento da Ásia e o IFAD deviam emprestar 37 milhões de dólares às Filipinas para dar sustentação a programas de microcrédito. Devido a complicações burocráticas, até março de 1998 esse dinheiro ainda não estava disponível. Depois de cinco anos, durante os quais especialistas analisaram o projeto e gastaram centenas de milhares de dólares, as famílias pobres da ilha de Negros ainda não tiveram o aumento dos empréstimos do programa de microcrédito que a sua situação calamitosa exigia.


 

Não posso deixar de pensar que se o projeto da ilha de Negros simplesmente tivesse recebido uma quantidade igual à do custo de uma única missão do IFAD o microcrédito teria sido capaz de atingir muitas centenas de famílias pobres.

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Não posso deixar de notar as similaridades entre o "mundo social" e o "mundo religioso". Em ambos, alguns participantes de certas organizações acham que são os "senhores do saber", mesmo que nem conheçam a vida daqueles a quem dizem desejar ajudar.


 

Outra similaridade inquietante é que os recursos, muitas vezes, se esvaem em "despesas administrativas e com o staff" e não atingem quem se deseja ajudar.


 


 

Bento Souto

segunda-feira, junho 22, 2009

PARABÉNS KAKÁ!

Como todo brasileiro eu vibrei com a vitória do Brasil sobre a Itália.


 

Todavia, além do futebol, o que eu mais gostei de ver foi a atitude de Kaká em um lance do jogo. Ao cometer uma falta em Pirlo, jogador da Itália, mesmo sem o árbrito marcar, Kaká parou o lance, reconheceu a falta e pediu desculpas ao Pirlo.


 

Ah, naquele momento eu vibrei. Vibrei porque esse é o comportamento que eu espero que um cristão tenha dentro de campo. Chega de ver aquelas mensagens nas camisas por baixo do uniforme com o nome de Jesus. Chega de ver mãos levantadas ao céu e gritos de "glória a Deus". O que eu quero ver são gestos como esse de Kaká, onde a Justiça prevalece sobre o desejo de vencer. Sim, em minha opinião, Kaká fez a jogada mais bonita de todo o jogo, ainda que não tenha mandado nenhuma bola para as redes da Itália.


 

Talvez essa minha vibração se deva ao fato de que detestava o comportamento de um pastor que jogava bola conosco quando eu era um garoto. A bola saía e ele dizia que não. A bola batia nele e ao invés dele dizer que era escanteio, ela negava. Ele cometia falta e dizia que o lance era normal. Isso me irritava e contribui para que eu visse que a religião do pastor só era praticada nos templos e não no campo de futebol.


 

Por isso, eu dou os parabéns ao Kaká e gostaria de ver mais cristãos fazendo o que ele fez hoje.


 

Sei que os críticos dirão que Kaká segue os ensinamentos de líderes inescrupulosos. Pra mim, isso é problema do Kaká. Aliás, um problema até pequeno em vista aa pouca idade dele. Eu, do alto dos meus 48 anos, já aprendi que nem sempre se acerta em tudo na vida. Todavia, eu me alegro quando vejo que alguém valoriza mais o agir com Justiça do que ganhar. Isso serve pra mim como sinal de aprendizado. Quem segue por esse caminho, não seguirá falsos ensinos por muito tempo.


 

Parabéns, Kaká!


 

Alguns dirão que Kaká não merece os parabéns porque o comportamento dele nada mais é do que o que se espera de um cristão. Eu concordo com isso. Entretanto, quando apenas um faz o que deveria ser regra, esse merece os parabéns.


 

Pense nisso na próxima vez que você for jogar futebol ou fazer qualquer outra coisa. Maradona venceu uma Copa do Mundo fazendo um gol com a mão. Vencer, violando a Justiça. parece não combinar com o ensino de Jesus. Talvez tenha sido por isso que Ele disse:


 

Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me. Quem quiser, pois, salvar a sua vida perdê-la-á; e quem perder a vida por causa de mim e do evangelho salvá-la-á. Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?


 


 

Abração


 


 

Bento Souto

quarta-feira, junho 17, 2009

O DEUS DESCONHECIDO

Por acaso você já teve curiosidade de saber quem era aquele DEUS DESCONHECIDO que o apóstolo Paulo mencionou em Atos 17:23, durante o discurso que ele proferiu no Areópago de Atenas? Você acha que Paulo disse que o DEUS DESCONHECIDO era o Deus que ele anunciava apenas porque aquele era um "deus" sem nome?


 

Eu lhe convido a visitar a Grécia antiga com Don Richardson, escritor do livro O Fator Melquisedeque, e conhecer a história de Epimênedes, profeta do DEUS DESCONHECIDO.


 


 

Bento Souto

bento@caiofabio.com

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Os atenienses


 

Em alguma época, durante o sexto século antes de Cristo, numa reunião do conselho na Colina de Marte, em Atenas...


 

"Diga-nos, Nícias, que aviso o oráculo de Pítias lhe deu? Por que esta praga caiu sobre nós? E por que os inúmeros sacrifícios realizados de nada adiantaram?"


 

O impassível Nícias olhou de frente o presidente do conselho e afirmou:

"A sacerdotisa declara que nossa cidade se encontra sob uma terrível maldição. Um certo deus a colocou sobre nós por causa do medonho crime de traição do rei Megacles contra os seguidores de Cylon."


 

"É verdade! Lembro-me agora", disse sombriamente outro membro do conselho. "Megacles obteve a rendição dos seguidores de Cylon com uma promessa de anistia, depois violou prontamente sua própria palavra e os matou! Mas qual é o deus que ainda nos condena por esse crime? Já oferecemos sacrifícios de expiação a todos os deuses!"


 

"Não é bem assim", replicou Nícias. "A sacerdotisa afirma que resta ainda um deus a ser apaziguado."


 

"Quem poderia ser?" perguntaram os anciãos, olhando incrédulos para Nícias.


 

"Não posso contar-lhes", respondeu ele. "O próprio oráculo parece não saber o seu nome. Ela disse apenas que..."


 

Nícias fez uma pausa, observando as faces ansiosas de seus colegas. Enquanto isso, da cidade enlutada à volta deles, ouvia-se o eco de milhares de cânticos fúnebres.


 

Nícias continuou: "... precisamos enviar um navio imediatamente a Cnossos, na Ilha de Creta, e trazer de lá para Atenas um homem chamado Epimênides. A sacerdotisa assegurou-me que ele saberá como apaziguar esse deus ofendido, livrando assim a nossa cidade."


 

"Não existe alguém suficientemente sábio aqui em Atenas?" esbravejou um ancião indignado. "Temos de apelar para um... um estrangeiro?"


 

"Se conhece algum grande sábio em Atenas, pode chamá-lo", disse Nícias. "Caso contrário, cumpramos simplesmente as ordens do oráculo."


 

Um vento frio, frio como se tocado pelos dedos gélidos do terror que varria Atenas, fez-se presente na câmara de mármore branco do conselho na Colina de Marte. Aconchegando-se mais em seu manto de magistrado, cada ancião refletiu sobre as palavras de Nícias.


 

"Vá em nosso nome, meu amigo", disse o presidente do conselho. "Traga esse Epimênides! Se ele atender ao seu pedido e livrar nossa cidade, nós o recompensaremos."


 

Os demais membros do conselho concordaram. O calmo Nícias, de voz suave, levantou-se, inclinando-se diante da assembléia, deixando a câmara. Ao descer a Colina de Marte, ele se encaminhou para o porto de Pireu, que ficava a 13 km de distância, na Baía de Falerom. Um navio achava-se ali ancorado.


 

Epimênides desceu agilmente para a terra, em Pireu, seguido de Nícias. Os dois homens encaminharam-se de imediato para Atenas, recobrando aos poucos a força das pernas depois da longa viagem por mar, desde Creta. Ao entrarem na já mundialmente famosa "cidade dos filósofos", os sinais da praga eram vistos por toda a parte. Mas Epimênides observou outra coisa:


 

"Nunca vi tantos deuses!" exclamou o cretense para o seu guia, piscando surpreso.


 

Falanges ladeavam os dois lados da estrada que saía do Pireu. Outros deuses, centenas deles, adornavam um terreno íngreme e rochoso, chamado acrópole. Tempos depois, nesse mesmo lugar, os atenienses construíram o Partenon.


 

"Quantos são os deuses de Atenas?" inquiriu Epimênides.


 

"Várias centenas pelo menos!" replicou Nícias.


 

"Várias centenas!", foi a exclamação espantada de Epimênides.


 

"Aqui é mais fácil encontrar deuses do que homens!"


 

"Tem razão!", riu o conselheiro Nícias. "Não sei quantos provérbios já foram feitos sobre 'Atenas, a cidade saturada de deuses'. Com a mesma facilidade que se tira uma pedra da pedreira, outro deus é trazido para a cidade!"1


 

Nícias parou repentinamente, refletindo sobre o que acabara de dizer. "Todavia", começou pensativo, "o oráculo de Pítias declara que os atenienses precisam apaziguar ainda um outro deus. E você, Epimênides, deve promover a intercessão necessária. Ao que parece, apesar do que eu disse, nós, atenienses, ainda precisamos de mais um deus!"


 

Jogando a cabeça para trás e rindo, Nícias exclamou: "Realmente, Epimênides, não consigo adivinhar quem poderia ser esse outro deus. Os atenienses são os maiores colecionadores de deuses no mundo! Já saqueamos as teologias de muitos povos das vizinhanças, apoderando-nos de toda divindade que possamos transportar para a nossa cidade, por terra ou por mar."


 

"Talvez seja esse o seu problema", disse Epimênides com um ar misterioso.


 

Nícias piscou os olhos para o amigo, sem compreender, como quem deseja um esclarecimento desse último comentário. Mas alguma coisa na atitude de Epimênides o silenciou. Momentos depois, chegaram a um pórtico com piso de mármore, junto à câmara do conselho na Colina de Marte. Os anciãos de Atenas já haviam sido avisados e o conselho os esperava.


 

"Epimênides, agradecemos sua ... " começou o presidente da assembléia.


 

"Sábios anciãos de Atenas, não há necessidade de agradecimentos." Epimênides interrompeu. "Amanhã, ao nascer do sol, tragam um rebanho de ovelhas, um grupo de pedreiros e uma grande quantidade de pedras e argamassa até a ladeira coberta de relva, ao pé desta rocha sagrada. As ovelhas devem ser todas sadias e de cores diferentes - algumas brancas, outras pretas. Vocês não devem deixá-las comer depois do descanso noturno. É preciso que sejam ovelhas famintas! Vou agora descansar da viagem. Acordem-me ao amanhecer."


 

Os membros do conselho trocaram olhares curiosos, enquanto Epimênides cruzava o pórtico em direção a um quarto sossegado, enrolando-se em seu manto como num cobertor e sentando-se para meditar.


 

O presidente voltou-se para um dos membros jovens do conselho'. "Veja que tudo seja feito como ele ordenou", disse ele.


 

"As ovelhas estão aqui", falou o membro jovem, humildemente.


 

Epimênides, despenteado e ainda meio dormindo, saiu de seu descanso e seguiu o mensageiro até a ladeira que ficava na base da Colina de Marte. Dois rebanhos - um de ovelhas pretas e brancas e outro de conselheiros, pastores e pedreiros - achavam-se à espera, debaixo do sol que nascia. Centenas de cidadãos, desfigurados por outra noite de vigília cuidando dos doentes atingidos pela praga e chorando pelos mortos, galgaram os pequenos outeiros e ficaram observando ansiosos.


 

"Sábios anciãos", começou Epimênides, "vocês já se esforçaram muito ofertando sacrifícios aos seus numerosos deuses; entretanto, tudo se mostrou inútil. Vou agora oferecer sacrifícios baseado em três suposições bem diferentes das suas. Minha primeira suposição ..."


 

Todos os olhos estavam fixos no cretense de elevada estatura; todos os ouvidos atentos para captar suas próximas palavras.


 

" ... é que existe ainda outro deus interessado na questão desta praga - um deus cujo nome não conhecemos e que não está, portanto, sendo representado por qualquer ídolo em sua cidade. Segundo, vou supor também que este deus é bastante poderoso - e suficientemente bondoso para fazer alguma coisa a respeito da praga, se apenas pedirmos a sua ajuda."


 

"Invocar um deus cujo nome é desconhecido?" exclamou um dos anciãos. "Isso é possível?"


 

"A terceira suposição é a minha resposta à sua pergunta", replicou Epimênides. "Essa hipótese é muito simples. Qualquer deus suficientemente grande e bondoso para fazer algo a respeito da praga é também poderoso e misericordioso para nos favorecer em nossa ignorância - se reconhecermos a mesma e o invocarmos!"


 

Murmúrios de aprovação misturaram-se com o balido das ovelhas famintas. Os anciãos de Atenas jamais tinham ouvido essa linha de raciocínio antes. Mas, por que, perguntavam eles, as ovelhas deviam ser de cores diferentes?


 

"Agora'" gritou Epimênides, "preparem-se para soltar as ovelhas na ladeira sagrada! Uma vez soltas, deixem que cada animal paste onde quiser, mas façam com que seja seguido por um homem que o observe cuidadosamente." A seguir, levantando os olhos para o céu, Epimênides orou com voz profunda e cheia de confiança: "ó, tu, deus desconhecido! Contempla a praga que aflige esta cidade! E se de fato tens compaixão para perdoar-nos e ajudar-nos, observa este rebanho de ovelhas! Revela tua disposição para responder, eu peço, fazendo com que qualquer ovelha que te agrade deite na relva em vez de pastar. Escolha as brancas se elas te agradarem; as pretas se te causarem prazer. As que escolheres serão sacrificadas a ti - reconhecendo nossa lamentável ignorância do teu nome!"


 

Epimênides sentou-se na grama, inclinou a cabeça e fez sinal aos pastores que guardavam o rebanho. Estes vagarosamente se afastaram. Com rapidez e voracidade, as ovelhas se espalharam pela colina, começando a pastar. Epimênides ficou ali sentado como uma estátua, com os olhos baixos.


 

"É inútil", murmurou baixinho um conselheiro. "Mal amanheceu e raras vezes vi um rebanho tão faminto. Nenhum animal vai deitar-se antes de encher o estômago e quem acreditará então que foi um deus que o levou a isso?"


 

Epimênides deve ter escolhido esta hora do dia deliberadamente!" respondeu Nícias. "Só assim poderemos saber que a ovelha que se deitar o fará em obediência à vontade desse deus desconhecido, e não por sua própria inclinação!"


 

Mal Nícias terminara de falar quando um pastor gritou: "Olhem!"


 

Todos os olhos se voltaram para ver um carneiro dobrar os joelhos e deitar-se na relva.


 

"Eis aqui outro!" bradou um conselheiro surpreso, fora de si por causa do espanto. Em poucos minutos algumas das ovelhas se achavam acomodadas sobre a relva suculenta demais para que qualquer herbívoro faminto pudesse resistir - em circunstâncias normais!


 

"Se apenas uma deitasse, teríamos dito que estava doente!" exclamou o presidente do conselho. "Mas isto! Isto só pode ser uma resposta'"


 

Com os olhos cheios de reverência, ele se voltou, dizendo a Epimênides: "O que faremos agora?"


 

"Separem as ovelhas que estão descansando", replicou o cretense, levantando a cabeça pela primeira vez desde que invocara o deus desconhecido, "e marquem o lugar onde cada uma se acha. Façam depois com que os pedreiros levantem altares - um altar em cada ponto onde as ovelhas descansaram!"


 

Pedreiros entusiastas começaram a fazer argamassa e no final da tarde ela já havia endurecido o suficiente. Todos os altares se achavam preparados para uso.


 

"Qual o nome do deus que gravaremos sobre esses altares?" perguntou um dos conselheiros do grupo mais jovem, excessivamente ansioso. Todos se voltaram para ouvir a resposta do cretense.


 

"Nome?" repetiu Epimênides, como se refletindo. "A divindade, cuja ajuda buscamos, agradou-se em responder à nossa admissão de ignorância. Se agora pretendermos mostrar conhecimento, gravando um nome quando na verdade não temos a menor idéia a respeito dele, temo que vamos apenas ofendê-la!".


 

"Não podemos correr esse risco", concordou o presidente do conselho. "Mas com certeza deve haver um meio apropriado de - de dedicar cada altar antes de usá-lo."


 

"Tem razão, sábio conselheiro", declarou Epimênides com um sorriso raro. "Existe um meio. Inscrevam simplesmente as palavras agnosto theo - a um deus desconhecido - no lado de cada altar. Nada mais é necessário."


 

Os atenienses gravaram as palavras recomendadas pelo conselheiro cretense. A seguir, sacrificaram cada ovelha "dedicada" sobre o altar marcando o ponto em que a mesma havia deitado. A noite caiu. Na madrugada do dia seguinte os dedos mortais da praga sobre a cidade já se haviam afrouxado. No decorrer de uma semana, os doentes sararam. Atenas encheu-se de louvor ao "Deus desconhecido" de Epimênides e também a este, por ter prestado socorro tão surpreendente de um modo verdadeiramente engenhoso. Cidadãos agradecidos colocaram festões de flores ao redor do grupo despretensioso de altares na encosta da Colina de Marte. Mais tarde, eles esculpiram uma estátua de Epimênides sentado é a colocaram diante de um de seus templos.


 

Com o correr do tempo, porém, o povo de Atenas começou a esquecer-se da misericórdia que o "deus desconhecido" de Epimênides lhes concedera. Seus altares na colina foram negligenciados e eles voltaram a adorar centenas de deuses que se mostraram incapazes de remover a maldição da cidade. Vândalos demoliram parte dos altares e removeram pedras de outros. O mato e o musgo começaram a crescer sobre as ruínas até que ...


 

Certo dia, dois anciãos que se lembravam da importância dos altares pararam diante deles a caminho do conselho. Apoiados em seus bordões eles contemplaram pensativos as relíquias ocultas por trepadeiras. Um dos anciãos retirou um pouco do musgo e leu a antiga inscrição encoberta por ele: " 'Agnosto theo'. Demas - você se lembra?"


 

"Como poderia esquecer?" respondeu Demas. "Eu era o membro jovem do conselho que ficou acordado a noite inteira para certificar-me de que o rebanho, as pedras, a argamassa e os pedreiros estariam prontos ao nascer do sol!"


 

"E eu", replicou o outro ancião, "era aquele outro membro jovem e ansioso que sugeriu que fosse gravado em cada altar o nome de algum deus! Que tolice".


 

Ele fez uma pausa, mergulhado em seus pensamentos, acrescentando a seguir: "Demas, você talvez me considere sacrílego, mas não posso deixar de sentir que se o "Deus desconhecido" de Epimênides se revelasse abertamente a nós, logo deixaríamos de lado todos os outros!" O ancião barbudo balançou o bordão com certo desprezo na direção dos ídolos surdos e mudos que, em fileira após fileira, cobriam a crista da acrópole, em número maior do que nunca antes.


 

"Se Ele jamais vier a revelar-se", disse Demas pensativamente, "como nosso povo saberá que não é um estranho, mas um Deus que já participou dos problemas de nossa cidade?"


 

"Acho que só existe um meio", replicou o primeiro ancião. "Devemos preservar pelo menos um desses altares como evidência para a posteridade. E a história de Epimênides deve, de alguma forma, ser mantida viva entre as nossas tradições."


 

"Uma grande idéia a sua!" entusiasmou-se Demas. "Olhe! Este ainda está em boas condições. Vamos empregar pedreiros para pô-lo e amanhã lembraremos todo o conselho dessa antiga vitória sobre a praga. Faremos passar uma moção para incluir a manutenção de pelo menos este altar entre as despesas perpétuas de nossa cidade!"


 

Os dois anciãos apertaram-se as mãos para fechar o acordo e, de braços dados, seguiram caminho abaixo, batendo alegremente os bordões contra as pedras da Colina de Marte.

terça-feira, junho 09, 2009

JANUSZ KORCZAC - OUTRO "ANJO" DE VARSÓVIA

Rafael F. Scharf
Vice-Presidente da Associação Internacional Janusz Korczak da Inglaterra

A vida de Janusz Korczak é tão tocante que, ao contá-la, é necessário evitar a ênfase patética que se impõe, a fim de permanecer-se fiel àquele sobre o qual falamos.

Ele era, na mais profunda acepção do termo, um homem simples, toda afetação lhe era estranha. É certo que ele não imaginava que seu nome seria célebre, e é por isto que cada vez que o glorificamos publicamente, inaugurando um monumento em sua homenagem, eu me pergunto qual seria o seu comentário se sua boca de pedra pudesse falar.

Sua história foi recontada inúmeras vezes e continuará sendo, porque ela mostra melhor, sem dúvida, não importando o caso particular, o horror inexprimível da última guerra e a exterminação dos judeus poloneses.

Em 5 de agosto de 1942, durante a liquidação do gueto de Varsóvia, os hitleristas ordenaram o agrupamento das crianças do orfanato de Korczak e o envio das mesmas ao campo de morte de Treblinka. O 'Velho Doutor' reuniu duzentos pupilos, os fez colocar-se sabiamente em fileiras e, à sua frente, partiu com eles para o 'Umschlagplatz', no cruzamento das ruas Stawki e Dzika, onde todos foram colocados em vagões de carga e enviados para os fornos crematórios.

Esta marcha nas ruas do gueto foi vista por algumas centenas de pessoas, e a silhueta pequena de Korczak dirigindo-se para seu calvário, inconsciente de seu heroísmo, fazendo aquilo que lhe parecia evidente, excitava as imaginações. A novidade espalhou-se imediatamente, repetida de boca em boca com a força de detalhes inventados: que Korczak carregava nos braços os dois menores, coisa pouco provável, porque ele mesmo estava doente e tinha dificuldades em andar; que o 'Jundenrat' tinha intervindo no derradeiro momento e tinha despachado em seguida um mensageiro atrás da fila, portador de um salvo conduto somente para Korczak, que foi por ele rejeitado com desprezo; que para apaziguar as crianças ele tinha lhes dito que iam em excursão e que eles, confiantes, o seguiam sem choro e sem protesto. Mas nenhum embelezamento é necessário diante dessa verdade nua e crua; não é preciso ajuntar qualquer coisa para torná-la mais eloqüente. A antítese do espírito e das dificuldades é clara e definitiva: um homem sábio por excelência, desinteressado e bom, opondo-se aos covardes, bárbaros obtusos, que se mostravam sob seu aspecto mais satânico.

Entre os milhões de mortes anônimas, a de Korczak tem um grande significado. Nos campos e guetos, ele se tornou para muitos, uma inspiração, pois aí o que mais ajudava a sobreviver era a convicção obstinada e indestrutível que a dignidade humana poderia vencer , embora tudo parecesse provar o contrário.

A imprensa clandestina dos campos mostra bem o quanto esta derradeira caminhada sublime do Velho Doutor foi um reconforto e uma dose de ânimo para seus contemporâneos. A partir daí sua glória tem crescido e o mundo fez de Korczak um símbolo moral.

É preciso que nossa atenção à sua morte não obscureça o caráter de sua vida. Henryk Goldszmit (este era o seu verdadeiro nome – Janusz Korczak foi um pseudônimo tirado de um romance pouco conhecido de Kra Szewski) nasceu em Varsóvia há pouco mais de cem anos numa família abastada. O fato de seu pai ter sido um advogado conhecido e seu avô um médico mostra até que ponto o seu meio foi assimilado. Ele cresceu na solidão, preservado das influências do exterior, sem se dar conta de que era judeu e sem saber o que isso significava. Antes de terminar a escola ele perdeu o seu pai, atingido por uma doença mental. A miséria sucedeu a abundância. O jovem Henryk tomou sobre si, da maneira como pode, o encargo de sua mãe e irmã, e nos anos seguintes, freqüentemente passando fome, estudou medicina com enormes dificuldades. Quando, por fim, obteve seu diploma, as coisas começaram a melhorar, contribuindo também para isso sua reputação de escritor que se afirmava. Mas isto não durou muito tempo. Repentinamente um tipo de necessidade interior mudou completamente seu destino.

Com trinta e quatro anos ele abandonou o exercício da medicina para se ocupar de um orfanato, que do início ao seu fim, permaneceu associado ao seu nome. A idéia fixa de consagrar sua vida às crianças parecia possuí-lo. Ele não era um idealista ingênuo; o que o caracterizava era uma compreensão extraordinária da criança e a convicção da necessidade de lutar pelos seus direitos no mundo governado pelos adultos. Ele não tinha confiança no mundo governado pelos adultos, mas como cada verdadeiro reformador ele julgava que mesmo uma só pequena vela acesa valia mais que lamentar-se de escuridão. Sua intuição não excluía sua sensibilidade e ela está edificada sobre uma observação constante, clínica, poder-se-ia dizer, sobre um estudo minucioso dos fatos. Totalmente absorvido por sua única idéia, não havia lugar nele para tudo que os outros davam tanta importância – dinheiro, a celebridade, um lar, uma família.

Seu orfanato, construído e mantido exclusivamente graças às doações de pessoas caridosas, era destinado às crianças dos bairros pobres de Varsóvia. A obtenção de fundos para fins de caridade tinha então, como hoje, seu aspecto desagradável, que freqüentemente irrita aqueles que dela dependem. Korczak balançava a cabeça em desaprovação perante o preço do material gasto para encerar o assoalho antes de um baile de benemerência e ele se lamentava do tempo que perdia com quem vinha visitar o orfanato. Mas a força de sua personalidade fazia que os doadores considerassem uma honra o financiamento de seu trabalho.

No domínio da educação e da psicologia da criança, ele era um pensador pragmático original e, ao mesmo tempo, um pioneiro de princípios que serviam de modelos para outros. Ele se esforçava constantemente de refazer seu sistema baseado sobre a compreensão das necessidades mais profundas da criança. Sua influência se exercia tanto por sua presença direta quanto pelo que escrevia no jornal do orfanato preparado pelas crianças e destinados à elas mesmas; a leitura em comum dessa publicação era um acontecimento semanal dos mais importantes. Conta-se que ao longo de 30 anos de seu trabalho intenso, ele jamais deixou de fornecer um artigo por semana à redação. As regras do orfanato eram seguidas por um código, cujo parágrafo 1000 previa como a pena mais alta, a expulsão pura e simples. Cada criança que tinha reclamação contra outra tinha o direito de a fazer comparecer perante um tribunal composto por seus colegas. Korczak mesmo, se tivesse sido convocado, teria de se apresentar perante este tribunal e de se submeter a sua sentença.

À noite, após uma ronda em todos dormitórios, o Velho Doutor retornava ao seu quarto no sótão, a única 'casa' que ele teve durante toda a sua vida adulta, e lá, até tarde da noite, ele colocava ordem em suas notas e escrevia.

Ele era um escritor fecundo tanto no seu domínio profissional quanto, e antes de tudo, na sua criação para as crianças e sobre as crianças. Seus livros ilusoriamente simples nas suas formas e conteúdos, impregnados na mesma proporção de melancolia e humor, refletindo seus anseios interiores, muitas vezes satiricamente áspero em relação a sociedade, sempre cheios de emoção e compreensão, deixavam traços duráveis na memória de seus leitores jovens e velhos, destinando-se a ficar gravados na história da literatura desse gênero.
Lá pelos meados dos anos trinta Korczak envolveu-se em dois empreendimentos na Palestina. O que ele aí viu o comoveu e o refrescou espiritualmente. Sob o encorajamento de numerosos amigos e antigos discípulos ele começa então a pensar seriamente em fixar-se lá para sempre. Mas havia obstáculos. O que o atormentava sobretudo, era o medo de não encontrar um sucessor adequado para continuar seu trabalho em Varsóvia. Ou seja, o pensamento de se afastar de sua terra natal lhe era insuportável. Nas cartas que ele escrevia aos seus amigos para explicar as causas de suas hesitações ele invocava o 'seu Vístula' e 'sua Varsóvia bem-amada', das quais ele jamais se consolaria se tivesse que deixar. Além do mais, ele estava sem dinheiro e hesitava em se colocar dependente de qualquer um.

Quando os hitleristas fecharam os judeus de Varsóvia dentro do gueto, o orfanato perdeu sua casa à Rua Kruchmalna, do lado 'ariano', e transportou-se para locais provisórios, no interior dos muros do gueto. Naquele momento Korczak já percebia melhor que a maioria das pessoas que a máquina impiedosa os mataria a todos. Mas ele pensava em não renunciar ao seu direito de aliviar os sofrimentos. Alquebrado e doente, cada dia ele reunia as forças que lhe restavam e partia à procura de viveres e de medicamentos para as crianças. Às vezes ele não trazia nada de suas buscas obstinadas, outras vezes ele voltava somente com uma ínfima parte do necessário. Ele não temia solicitar com impertinência, de mendigar, de envergonhar as pessoas que se esquivavam de sua nobre ação. Nos dias em que ele nada encontrava ele não hesitava em dirigir-se mesmo aos piores especuladores e opressores judeus. Apesar de fome incessante cada vez mais insuportável e às doenças sempre mais freqüentes, ele cuidava para que seu orfanato funcionasse normalmente, a fim de que seus alunos pudessem sentir-se bem. Freqüentemente ele trazia dos locais mais distantes uma nova criança encontrada na rua, no fim de suas forças, para quem a bondade do Velho Doutor significava a salvação durante algum tempo ainda.

Nestas condições rigorosas levadas ao extremo e que em tempo normal é difícil de se imaginar, nós temos em Korczak, no seu trabalho cotidiano, um exemplo do que pode fazer um genuíno homem guiado pelo amor.

Sua vida é um modelo e somos tentados a ver nele, nesta silhueta franzina revestida de avental de inspetor que ele usava habitualmente, um exemplo típico de toda uma geração, uma encarnação da 'idade da criança'. Sua grandeza, que consistia nem mais nem menos em fazer seu dever, podia ser aquela de qualquer um, e mesmo sua morte trágica foi uma coisa comum, lá onde o martírio estava na ordem do dia.

Durante o 'Ano Korczak', instituído pela UNESCO para celebrar o centenário de seu nascimento, os escritores, os sábios, as pessoas de boa vontade em todas as partes do mundo, procuraram enriquecer-se com o conhecimento desse homem e de suas idéias, de sua vida e de sua morte, através de livros, de artigos e simpósios.

É de se supor que graças a isto, numerosos são aqueles que tomaram conhecimento do seu nome e do que ele significa. Sem dúvida é na Polônia e em Israel que ele é mais conhecido. Mas, nesse mundo barulhento e apressado de hoje em dia, a lembrança empalidece rapidamente. A despeito de todos os esforços ela desaparece progressivamente, sob uma massa de outros negócios. Aqueles que amam Korczak e que crêem na força de seu exemplo sentiam que era necessário encontrar um modo mais concreto de imortalizar sua figura e suas idéias. Assim souberam com alegria que uma obra grandiosa seria realizada na Polônia com a aprovação e a sustentação financeira do governo: um Instituto Científico de Proteção e Educação Janusz Korczak.

Foi-lhe destinado um espaço deslumbrante de uma centena de hectares lá onde Vístula – o Vístula bem-amado de Korczak – contorna a localidade de Lomianski. O projeto já está pronto.

É um empreendimento magnífico que levará seu nome. Não uma estátua de bronze ou de mármore, mas um centro cheio de vida, para onde virão crianças de perto e de longe, onde elas crescerão, se instruirão, se divertirão juntas, próximas à natureza, numa atmosfera de compreensão e boa vontade para com todos. Os educadores e os professores aí se reunirão para aprender observar, para participar das experiências de trabalho com as crianças e os adolescentes, para aproximar-se da realização dos sonhos de Korczak, mesmo que isso seja um passo apenas para um mundo no qual as crianças possam viver felizes.

segunda-feira, junho 08, 2009

O BANQUEIRO DOS POBRES – COMO TUDO COMEÇOU...

Tratava-se de encontrar um meio de ajudar essas 42 pessoas trabalhadoras e saudáveis. Eu não cessava de revolver o problema na mente, como um cão com seu osso. Se lhes emprestasse 27 dólares, elas poderiam vender seus produtos a quem quer que fosse e assim ver seu trabalho adequadamente remunerado, sem ter de apelar para os agiotas.

Estava resolvido: eu lhes emprestaria esses 27 dólares, e elas me reembolsariam quando estivessem em condições de fazê-lo.

Sufia precisava de crédito porque não tinha nenhuma reserva que lhe permitisse precaver-se contra os imponderáveis da vida, cumprir as obrigações familiares, prosseguir em sua atividade de fabricante de tamboretes, a fim de sobreviver em período de catástrofe.

Infelizmente não havia nenhuma instituição financeira capaz de satisfazer as necessidades dos pobres em matéria de crédito. Esse mercado do crédito, na ausência de instituições oficiais, fora açambarcado pelos agiotas locais, que sempre levavam seus "clientes" a se embrenhar mais fundo na estrada da pobreza. Uma estrada de mão única e muito congestionada.

Essas pessoas não eram pobres por estupidez ou por preguiça. Elas trabalhavam o dia inteiro, realizando tarefas físicas muito complexas. Eram pobres porque as estruturas financeiras de nosso país não tinham a disposição de ajudá-las a melhorar sua sorte. Era um problema estrutural, e não um problema individual.

Entreguei a Maimuna os 27 dólares, dizendo-lhe:

- Tome. Empreste esse dinheiro às 42 pessoas da nossa lista.

Todas elas poderão pagar os intermediários e vender seus produtos onde lhes propuserem um bom preço.

- Quando elas deverão pagar ao senhor?

- Quando puderem. Quando for vantajoso para elas vender seus produtos. Elas não vão me pagar juros. Não sou agiota.

Maimuna foi embora, sem dúvida um pouco perplexa diante da reviravolta sofrida pelos acontecimentos.


 

Normalmente, alguns segundos depois que ponho a cabeça no travesseiro já estou dormindo. Mas naquela noite eu não conseguia dormir; tinha vergonha de pertencer a uma sociedade incapaz de dar 27 dólares a 42 pessoas para ajudá-Ias a sobreviver por si mesmas.

Na semana seguinte subitamente me dei conta da insuficiência do que eu havia feito. Era uma solução pessoal, que obedecia a uma lógica puramente emocional. Eu me contentava com o empréstimo de 27 dólares, ao passo que era preciso encontrar uma solução institucional. Se outras pessoas tinham necessidade de capital, ir à procura do chefe do departamento de economia da universidade certamente não seria a solução. Uma pessoa pobre não pode subir uma colina para ir falar com um chefe de departamento. Além disso, os serviços de segurança do campus não a deixariam entrar, pensando tratar-se de um ladrão.

Era preciso fazer alguma coisa. Mas o quê?

Então resolvi entrar em contato com o gerente do banco local para lhe pedir que emprestasse dinheiro aos pobres. Tudo o que eu tinha de fazer era conseguir que uma instituição concedesse empréstimos a essas pessoas deserdadas. Aparentemente, uma coisa muito simples.


 

Foi então que tudo começou. Eu não tinha absolutamente intenção de me converter em credor; queria apenas resolver um problema imediato. Até hoje considero que meu trabalho e o de meus colegas do Grameen têm um único objetivo: pôr fim à pobreza, esse flagelo que humilha e denigre tudo o que um ser humano representa.

sábado, junho 06, 2009

IRENA SINDLER - O Anjo do Gueto de Varsóvia

Irena Sendler, em língua polaca
Irena Sendlerowa, (15 de Fevereiro de 1910 - 12 de Maio de 2008), também conhecida como "o anjo do Gueto de Varsóvia", foi uma activista dos direitos humanos durante a Segunda Guerra Mundial, tendo contribuido para salvar mais de 2.500 vidas ao levar alimentos, roupa e medicamentos às pessoas barricadas no gueto, com risco da própria vida.

A Mãe das crianças do Holocausto

A razão pela qual resgatei as crianças tem origem no meu lar, na minha infância. Fui educada na crença de que uma pessoa necessitada deve ser ajudada com o coração, sem importar a sua religião ou nacionalidade. Irena Sendler

Quando a Alemanha Nazista invadiu o país em 1939, Irena era enfermeira no Departamento de Bem-estar Social de Varsóvia, que organizava os espaços de refeição comunitários da cidade. Ali trabalhou incansavelmente para aliviar o sofrimento de milhares de pessoas, tanto judias como católicas. Graças a ela, esses locais não só proporcionavam comida para órfãos, anciãos e pobres como lhes entregavam roupa, medicamentos e dinheiro.

Em 1942, os názis criaram um gueto em Varsóvia, e Irena, horrorizada pelas condições em que ali se sobrevivia, uniu-se ao Conselho para a Ajuda aos Judeus, Zegota. Ela mesma contou: "Consegui, para mim e minha companheira Irena Schultz, identificações do gabinete sanitário, entre cujas tarefas estava a luta contra as doenças contagiosas. Mais tarde tive êxito ao conseguir passes para outras colaboradoras. Como os alemães invasores tinham medo de que ocorresse uma epidemia de tifo, permitiam que os polacos controlassem o recinto."

Quando Irena caminhava pelas ruas do gueto, levava uma braçadeira com a estrela de David, como sinal de solidariedade e para não chamar a atenção sobre si própria. Pôs-se rapidamente em contacto com famílias, a quem propôs levar os seus filhos para fora do gueto, mas não lhes podia dar garantias de êxito. Eram momentos extremamente difíceis, quando devia convencer os pais a que lhe entregassem os seus filhos e eles lhe perguntavam: "Podes prometer-me que o meu filho viverá?". Disse Irena, "Quê podia prometer, quando nem sequer sabia se conseguiriam sair do gueto? A única certeza era a de que as crianças morreriam se permanecessem lá. Muitas mães e avós eram reticentes na entrega das crianças, algo absolutamente compreensível, mas que viria a se tornar fatal para elas. Algumas vezes, quando Irena ou as suas companheiras voltavam a visitar as famílias para tentar fazê-las mudar de opinião, verificavam que todos tinham sido levados para os campos da morte.

Ao longo de um ano e meio, até à evacuação do gueto no Verão de 1942, conseguiu resgatar mais de 2.500 crianças por várias vias: começou a recolhê-las em ambulâncias como vítimas de tifo, mas logo se valia de todo o tipo de subterfúgios que servissem para os esconder: sacos, cestos de lixo, caixas de ferramentas, carregamentos de mercadorias, sacas de batatas, caixões... nas suas mãos qualquer elemento transformava-se numa via de fuga.

Irena vivia os tempos da guerra pensando nos tempos de paz e por isso não fica satisfeita só por manter com vida as crianças. Queria que um dia pudessem recuperar os seus verdadeiros nomes, a sua identidade, as suas histórias pessoais e as suas famílias. Concebeu então um arquivo no qual registava os nomes e dados das crianças e as suas novas identidades.

Os názis souberam dessas actividades e em 20 de Outubro de 1943 Irena Sendler foi presa pela Gestapo e levada para a infame prisão de Pawiak onde foi brutalmente torturada. Num colchão de palha encontrou uma pequena estampa de Jesus Misericordioso com a inscrição: ?Jesus, em Vós confio?, e conservou-a consigo até 1979, quando a ofereceu ao Papa João Paulo II.

Ela, a única que sabia os nomes e moradas das famílias que albergavam crianças judias, suportou a tortura e negou-se a trair seus colaboradores ou as crianças ocultas. Quebraram-lhe os ossos dos pés e as pernas, mas não conseguiram quebrar a sua determinação. Foi condenada à morte. Enquanto esperava pela execução, um soldado alemão levou-a para um "interrogatório adicional". Ao sair, gritou-lhe em polaco "Corra!". No dia seguinte Irena encontrou o seu nome na lista de polacos executados. Os membros da ?egota tinham conseguido deter a execução de Irena subornando os alemães, e Irena continuou a trabalhar com uma identidade falsa.

Em 1944, durante o Levantamento de Varsóvia, colocou as suas listas em dois frascos de vidro e enterrou-os no jardim de uma vizinha para se assegurar de que chegariam às mãos indicadas se ela morresse. Ao finalizar a guerra, Irena desenterrou-os e entregou as notas ao doutor Adolfo Berman, o primeiro presidente do comité de salvação dos judeus sobreviventes. Lamentavelmente a maior parte das famílias das crianças tinha sido morta nos campos de extermínio názis. De início, as crianças que não tinham família adoptiva foram cuidadas em diferentes orfanatos e pouco a pouco foram enviadas para a Palestina.

As crianças só conheciam Irena pelo seu nome de código "Jolanta". Mas anos depois, quando a sua fotografia saiu num jornal depois de ser premiada pelas suas acções humanitárias durante a guerra, um homem chamou-a por telefone e disse-lhe: "Lembro-me da sua cara. Foi você quem me tirou do gueto." E assim começou a receber muitas chamadas e reconhecimentos públicos.

Em 1965 a organização Yad Vashem de Jerusalém outorgou-lhe o título de Justa entre as Nações e nomeou-a cidadã honorária de Israel.

Em Novembro de 2003 o presidente da República Aleksander Kwa?niewski, concedeu-lhe a mais alta distinção civil da Polónia: a Ordem da Águia Branca. Irena foi acompanhada pelos seus familiares e por El?bieta Ficowska, uma das crianças que salvou, que recordava como "a menina da colher de prata".

Proposta para o Nobel da Paz

Irena Sendler foi apresentada como candidata para o prémio Nobel da Paz pelo Governo da Polónia. Esta iniciativa pertenceu ao presidente Lech Kaczy?ski e contou com o apoio oficial do Estado de Israel através do primeiro-ministro Ehud Olmert, e da Organização de Sobreviventes do Holocausto residentes em Israel.

As autoridades de O?wi?cim (Auschwitz) expressaram o seu apoio a esta candidatura, já que consideraram que Irena Sendler era uma dos últimos heróis vivos da sua geração, e que tinha demonstrado uma força, uma convicção e um valor extraordinários frente a um mal de uma natureza extraordinária.

O prêmio, no entanto foi dado a Al Gore pelo slide show sobre o clima global.

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Fonte:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Irena_Sendler


 

A história dessa filha da Ordem de Melquisedeque, Irena Sendler, nos foi enviada pelo Wilton Segundo. Agradecemos a contribuição dele e contamos com as de todos vocês que nos acompanham aqui.


 

Abração


 

Bento Souto

sexta-feira, junho 05, 2009

O BANQUEIRO DOS POBRES – 42 Famílias na Miséria pela falta de 27 dólares!

Por toda parte havia homens trabalhando, alguns no campo, outros consertando seu riquixá*, outros martelando metal. No campo, em Bangladesh, o trabalho é incessante. Fico sempre impressionado com a agilidade e a força física dos bengalis.

Latifee e eu retomamos o caminho até minha casa, no alto da colina. Quando lá chegamos, num passo lento, atravessamos o jardim com as últimas luzes do dia.

Subir e descer a colina a pé me faz um grande bem. Eu pensava na imensa defasagem existente entre as grandes fórmulas dos governos e as realidades da prática. Na Declaração Universal dos Direitos do Homem se diz que "toda pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para assegurar sua saúde, seu bem-estar e o de sua família, sobretudo para a alimentação, o vestuário, a moradia, os cuidados médicos, assim como os serviços sociais necessários; tem direito à segurança em caso de desemprego, de doença, de invalidez, de viuvez, de velhice ou nos outros casos de perda dos meios de subsistência em conseqüência de circunstâncias alheias à sua vontade".

A Declaração exige igualmente que os Estados assegurem "o reconhecimento e a aplicação efetiva" desses direitos.

Parecia-me que a pobreza culminava na negação efetiva de todos os direitos do homem, e não apenas na de um pequeno número deles. Os pobres não têm nenhum direito, independentemente das declarações assinadas pelos governos ou do que eles escrevem em seus grandes livros.

Tentei ver o problema do ponto de vista de Sufia. Como contornar a dificuldade do custo do bambu? Seria preciso subir até o alto do muro? Fazer um desvio? Procurar uma fenda por onde fosse possível passar?

Eu não via solução. Se sua vida era um inferno, isso acontecia porque o bambu custava 5 takas. A complicação toda era apenas essa. Ela não tinha o dinheiro necessário e estava presa nesse círculo vicioso: tomar emprestado do intermediário para lhe vender em seguida o produto de seu trabalho. Impossível sair dessa relação de dependência. Vistas desse ângulo, as coisas pareciam relativamente simples. Tudo o que eu devia fazer era lhe emprestar 5 takas.

Até aquele momento ela havia trabalhado por quase nada. Tratava-se inegavelmente de uma forma de escravidão. O intermediário costumava sempre pagar a Sufia um preço que só permitia a ela reembolsar os materiais e satisfazer suas necessidades elementares, quer dizer, sobreviver, obrigando-a assim a sempre pedir emprestado.

Sufia não sairia desse estado de semi-escravidão enquanto não encontrasse os 5 takas para se libertar. Sua salvação chegaria pelo crédito. Com o crédito ela poderia vender sem constrangimento seus produtos no mercado, obtendo uma melhor margem entre o custo dos materiais e o preço de venda.

No dia seguinte chamei Maimuna, uma aluna que coletava informações para mim, e lhe pedi que preparasse uma relação de todas as pessoas de Jobra que, como Sufia, tomavam emprestado de intermediários e se viam assim destituídas do fruto de seu trabalho.

Uma semana depois a lista já estava pronta. Havia nela 42 pessoas que tinham tomado emprestado um total de 856 takas, ou seja, menos de 27 dólares para o grupo todo.

- Meu Deus, tanta miséria nessas 42 famílias, e tudo isso porque lhes falta o equivalente a 27 dólares! - exclamei.

Maimuna permanecia de pé em silêncio. Estávamos ambos estupefatos, para não dizer indignados, em face de uma tal aberração.

* Veículo leve de duas rodas, com um lugar e puxado por uma pessoa. É usado sobretudo no Extremo Oriente. (N.T.)

terça-feira, junho 02, 2009

O BANQUEIRO DOS POBRES - COMO VIVER COM 2 CENTAVOS POR DIA?

Como nasci em Chittagong e falo o dialeto local, tinha menos dificuldade em ganhar a confiança dos aldeões do que se fosse estrangeiro. Mesmo assim, isso não era fácil.

Adoro crianças, e cumprimentar as mães por seus filhos sempre foi para mim um meio natural de colocá-Ias à vontade. Minha mãe teve catorze filhos, dos quais nove sobreviveram. Como eu era o terceiro, passei grande parte da infância dando mamadeira a meus irmãos e à minha irmã mais nova e trocando-lhes as fraldas. Em casa, sempre que tinha tempo, pegava no colo um bebê para acariciá-lo. Essa experiência se revelaria preciosa em meu trabalho.

Eu ia pegar no colo uma criança, mas ela se pôs a chorar e correu para perto da mãe.

- Quantos filhos a senhora tem? - perguntou-lhe Latifee.

- Três.

- Esse é muito bonito - disse eu.

Tranqüilizada, a mãe apareceu na soleira da porta com o filho nos braços.

Era uma jovem de uns 20 anos. Miúda, de pele morena e olhos negros, usando um sári vermelho, ela se parecia com milhões de mulheres que trabalham duro de manhã à noite numa miséria total.

- Como a senhora se chama?

- Sufia Begum.

- Quantos anos tem?

- Vinte e um anos.

Eu não tinha nem lápis nem bloco de notas, pois isso poderia afugentá-la. Encarregava meus alunos de anotar tudo depois.

- O bambu é da senhora? - perguntei-lhe.

-Sim.

- Como a senhora o obtém?

- Eu o compro.

- Quanto ele custa?

- Cinco takas. (Isso representava na época 22 cents de dólar.)

- A senhora tem esses 5 takas?

- Não, eu peço emprestado dos paikars.

- Os intermediários? O que a senhora combina com eles?

- Eu preciso vender para eles meus tamboretes de bambu no fim do dia para devolver o dinheiro emprestado. O que sobra é meu lucro.

- Por quanto a senhora vende o tamborete?

- Cinco takas e 50 paisas.

- Então a senhora tem um lucro de 50 paisas.

Ela assentiu com a cabeça. Isso equivalia a 2 cents de dólar, nem mais nem menos.

- Mas a senhora não poderia tomar emprestado o dinheiro e comprar a senhora mesma os materiais?

- Poderia, mas me cobrariam um absurdo. E as pessoas que apelam para eles empobrecem mais depressa ainda.

- Com quanto o agiota fica?

- Depende. Às vezes ele fica com 10% por semana. Eu mesma

tenho um vizinho que paga 10% por dia!

- E é tudo o que a senhora ganha fabricando esses belos tamboretes de bambu, 50 paisas?

-É.

Em todo o Terceiro Mundo as taxas usurárias são corriqueiras. Elas entraram de tal modo nos costumes que nem mesmo o financiado se dá conta do grau em que o contrato é leonino. Na área rural de Bangladesh um saco de arroz sem casca tomado de empréstimo no início do período de plantio deve ser reembolsado com dois sacos e meio no momento da colheita.

[...]

Toda sociedade tem seus agiotas. Nenhum programa econômico poderá deter o processo de alienação dos pobres enquanto estes permanecerem subjugados aos agiotas.

Sufia Begum retomou o trabalho; não tinha tempo a perder. Eu olhava suas mãozinhas, que trançavam os caules de bambu. Era assim que ela ganhava a vida, acocorada o tempo todo na terra endurecida. Seus dedos eram cheios de calos, e havia sujeira sob as unhas.

Como seus filhos poderiam romper o círculo infernal da pobreza para lograr ter uma vida melhor? Qual seria o futuro de seus bebês senão a miséria, agora e sempre? Como eles poderiam ir à escola se sua mãe mal ganhava para se alimentar, quanto mais para abrigá-los e vesti-los decentemente?

- Cinqüenta paisas é o que a senhora ganha por um dia inteiro de trabalho?

- Sim, nos dias bons.

Assim, ela ganhava o equivalente a 2 cents por dia: eu estava perplexo. Nos cursos que dava, eu falava em milhões de dólares, e ali, sob meus olhos, os problemas da vida eram decididos por centavos. Alguma coisa estava errada. Por que o curso da universidade não refletia em nada a realidade? Eu estava furioso comigo mesmo, furioso com um mundo tão duro, tão impiedoso. E sem o menor vislumbre de esperança no horizonte, nem a sombra de uma solução.

Sufia Begum era analfabeta, mas nem por isso deixava de ter habilidades. O simples fato de estar viva, sentada diante de mim, trabalhando, respirando, lutando calmamente dia após dia contra a adversidade, provava sem sombra de dúvida que ela era provida de uma habilidade útil - o sentido da sobrevivência.

A pobreza é velha como o mundo. Sufia não tinha nenhuma chance de melhorar sua situação econômica. Mas por quê? Eu era absolutamente incapaz de responder a essa pergunta. Desde a infância somos habituados a ver pobres à nossa volta e nunca perguntamos por que eles são pobres. No sistema econômico em que vivemos a renda de Sufia era mantida num nível tão baixo que ela não poderia jamais poupar um vintém, investir na expansão de sua base econômica. Por isso seus filhos estavam condenados a viver uma vida de penúria, sem nunca poder ter a menor reserva de dinheiro, exatamente como seus pais e os pais de seus pais.

Nunca nos passaria pela cabeça a idéia de que alguém poderia viver em desespero porque lhe faltavam 22 cents. Isso me parecia impossível, até mesmo ridículo. Eu deveria tirar do bolso a soma miserável de que precisava Sufia? Isso seria muito simples, muito fácil.

Por que minha universidade, meu departamento de economia, todos os departamentos de economia do planeta e os milhares de professores de economia inteligentes que há no mundo não tinham tentado compreender essas pessoas e socorrer aqueles que mais precisam de ajuda?

Resisti ao impulso de dar a Sufia o dinheiro de que ela precisava. Ela não pedia esmola. E, além do mais, isso não seria uma solução definitiva.



Muhammad Yunus
Banco Grameen, 10 de Julho de 1997.
(O Banqueiro dos Pobres - Editora Ática, 2000)