Como nasci em Chittagong e falo o dialeto local, tinha menos dificuldade em ganhar a confiança dos aldeões do que se fosse estrangeiro. Mesmo assim, isso não era fácil.
Adoro crianças, e cumprimentar as mães por seus filhos sempre foi para mim um meio natural de colocá-Ias à vontade. Minha mãe teve catorze filhos, dos quais nove sobreviveram. Como eu era o terceiro, passei grande parte da infância dando mamadeira a meus irmãos e à minha irmã mais nova e trocando-lhes as fraldas. Em casa, sempre que tinha tempo, pegava no colo um bebê para acariciá-lo. Essa experiência se revelaria preciosa em meu trabalho.
Eu ia pegar no colo uma criança, mas ela se pôs a chorar e correu para perto da mãe.
- Quantos filhos a senhora tem? - perguntou-lhe Latifee.
- Três.
- Esse é muito bonito - disse eu.
Tranqüilizada, a mãe apareceu na soleira da porta com o filho nos braços.
Era uma jovem de uns 20 anos. Miúda, de pele morena e olhos negros, usando um sári vermelho, ela se parecia com milhões de mulheres que trabalham duro de manhã à noite numa miséria total.
- Como a senhora se chama?
- Sufia Begum.
- Quantos anos tem?
- Vinte e um anos.
Eu não tinha nem lápis nem bloco de notas, pois isso poderia afugentá-la. Encarregava meus alunos de anotar tudo depois.
- O bambu é da senhora? - perguntei-lhe.
-Sim.
- Como a senhora o obtém?
- Eu o compro.
- Quanto ele custa?
- Cinco takas. (Isso representava na época 22 cents de dólar.)
- A senhora tem esses 5 takas?
- Não, eu peço emprestado dos paikars.
- Os intermediários? O que a senhora combina com eles?
- Eu preciso vender para eles meus tamboretes de bambu no fim do dia para devolver o dinheiro emprestado. O que sobra é meu lucro.
- Por quanto a senhora vende o tamborete?
- Cinco takas e 50 paisas.
- Então a senhora tem um lucro de 50 paisas.
Ela assentiu com a cabeça. Isso equivalia a 2 cents de dólar, nem mais nem menos.
- Mas a senhora não poderia tomar emprestado o dinheiro e comprar a senhora mesma os materiais?
- Poderia, mas me cobrariam um absurdo. E as pessoas que apelam para eles empobrecem mais depressa ainda.
- Com quanto o agiota fica?
- Depende. Às vezes ele fica com 10% por semana. Eu mesma
tenho um vizinho que paga 10% por dia!
- E é tudo o que a senhora ganha fabricando esses belos tamboretes de bambu, 50 paisas?
-É.
Em todo o Terceiro Mundo as taxas usurárias são corriqueiras. Elas entraram de tal modo nos costumes que nem mesmo o financiado se dá conta do grau em que o contrato é leonino. Na área rural de Bangladesh um saco de arroz sem casca tomado de empréstimo no início do período de plantio deve ser reembolsado com dois sacos e meio no momento da colheita.
[...]
Toda sociedade tem seus agiotas. Nenhum programa econômico poderá deter o processo de alienação dos pobres enquanto estes permanecerem subjugados aos agiotas.
Sufia Begum retomou o trabalho; não tinha tempo a perder. Eu olhava suas mãozinhas, que trançavam os caules de bambu. Era assim que ela ganhava a vida, acocorada o tempo todo na terra endurecida. Seus dedos eram cheios de calos, e havia sujeira sob as unhas.
Como seus filhos poderiam romper o círculo infernal da pobreza para lograr ter uma vida melhor? Qual seria o futuro de seus bebês senão a miséria, agora e sempre? Como eles poderiam ir à escola se sua mãe mal ganhava para se alimentar, quanto mais para abrigá-los e vesti-los decentemente?
- Cinqüenta paisas é o que a senhora ganha por um dia inteiro de trabalho?
- Sim, nos dias bons.
Assim, ela ganhava o equivalente a 2 cents por dia: eu estava perplexo. Nos cursos que dava, eu falava em milhões de dólares, e ali, sob meus olhos, os problemas da vida eram decididos por centavos. Alguma coisa estava errada. Por que o curso da universidade não refletia em nada a realidade? Eu estava furioso comigo mesmo, furioso com um mundo tão duro, tão impiedoso. E sem o menor vislumbre de esperança no horizonte, nem a sombra de uma solução.
Sufia Begum era analfabeta, mas nem por isso deixava de ter habilidades. O simples fato de estar viva, sentada diante de mim, trabalhando, respirando, lutando calmamente dia após dia contra a adversidade, provava sem sombra de dúvida que ela era provida de uma habilidade útil - o sentido da sobrevivência.
A pobreza é velha como o mundo. Sufia não tinha nenhuma chance de melhorar sua situação econômica. Mas por quê? Eu era absolutamente incapaz de responder a essa pergunta. Desde a infância somos habituados a ver pobres à nossa volta e nunca perguntamos por que eles são pobres. No sistema econômico em que vivemos a renda de Sufia era mantida num nível tão baixo que ela não poderia jamais poupar um vintém, investir na expansão de sua base econômica. Por isso seus filhos estavam condenados a viver uma vida de penúria, sem nunca poder ter a menor reserva de dinheiro, exatamente como seus pais e os pais de seus pais.
Nunca nos passaria pela cabeça a idéia de que alguém poderia viver em desespero porque lhe faltavam 22 cents. Isso me parecia impossível, até mesmo ridículo. Eu deveria tirar do bolso a soma miserável de que precisava Sufia? Isso seria muito simples, muito fácil.
Por que minha universidade, meu departamento de economia, todos os departamentos de economia do planeta e os milhares de professores de economia inteligentes que há no mundo não tinham tentado compreender essas pessoas e socorrer aqueles que mais precisam de ajuda?
Resisti ao impulso de dar a Sufia o dinheiro de que ela precisava. Ela não pedia esmola. E, além do mais, isso não seria uma solução definitiva.
Muhammad Yunus
Banco Grameen, 10 de Julho de 1997.
(O Banqueiro dos Pobres - Editora Ática, 2000)
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